STJ descriminalizou o desacato? Não é bem assim…

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 1.640.084, acolheu a tese do réu e reconheceu suposta incompatibilidade do crime de desacato com a Convenção Americana de Direitos Humanos.

O crime de desacato é tipificado no art. 331 do CP: “Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”.

O voto do relator, seguido pelos demais ministros da turma, assentou que o crime de desacato colide com o artigo 13 da Convenção:

Convenção Americana de Direitos Humanos

Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.

2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar: a. O respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b. A proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.

4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.

5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.
Utilizaram-se as justificativas desse dispositivo para fundamentar o voto: “Juntamente com as restrições diretas, as leis de desacato restringem indiretamente a liberdade de expressão, porque carregam consigo a ameaça do cárcere ou multas para aqueles que insultem ou ofendam um funcionário público. (…) a distinção entre a pessoa privada e a pública torna-se indispensável. A proteção outorgada a funcionários públicos pelas denominadas leis de desacato atenta abertamente contra esses princípios. Essas leis invertem diretamente os parâmetros de uma sociedade democrática, na qual os funcionários públicos devem estar sujeitos a um maior escrutínio por parte da sociedade”.

Acertada a colocação de que tratados e convenções sobre direitos humanos têm caráter supralegal (mas infraconstitucional); contudo, deve-se ter em mente, primeiro, que a decisão foi proferida em um Recurso Especial, cujos efeitos são inter partes, para o caso concreto.

Logo, trata-se de apenas um precedente, uma decisão isolada de uma das turmas recursais do STJ.

A competência para o controle de convencionalidade cujo parâmetro de controle sejam normas de direitos humanos aprovadas pelo mesmo quórum exigido para aprovação de emendas constitucionais (art. 5º, § 3º, da CF)é do STF, pois se equipara a norma de caráter constitucional.

Contudo, se o tratado/convenção não houver preenchido esse requisito, não há previsão para o controle concentrado, sendo cabível apenas o controle difuso, como no caso em tela.

Não obstante, há sérios problemas quanto ao mérito de reconhecer essa incompatibilidade.

É que não se pode confundir desacato com qualquer espécie de liberdade de expressão, porque desacato é ofensa, um abuso do direito de liberdade de expressão; no âmbito jurídico, excessos geralmente são passíveis de punição.

Tanto é que a conduta, mesmo se praticada contra particular, continua sendo crime (injúria).

O sujeito passivo do crime de desacato não é o funcionário público, é a Administração Pública (por isso o crime se encontra no Capítulo II do Código Penal: “dos crimes praticados por particular contra a Administração Pública”).

O servidor, nesse caso, não é ofendido pessoalmente; ele está a serviço da Administração e as agressões foram contra ele proferidas exclusivamente por isso (princípio da impessoalidade, contido no art. 37 da Constituição).

É essencial para a caracterização do tipo penal que o desacato ocorra pelo exercício da função.

Caso o funcionário público utilize o tipo como forma de coibir a liberdade do particular, estar-se-á configurado o abuso de autoridade, passível de punição na esfera penal e administrativa.

O princípio da Supremacia do Interesse Público Sobre o Privado e o Poder de Império, inerentes ao Poder Público, necessitam de meios de coercibilidade para o exercício das medidas legais emanadas pela Administração, que somente se concretizam por intermédio de seus servidores.

Ainda sim, repita-se: os abusos do direito à liberdade de expressão continuam sendo ilícitos e puníveis. Seja no âmbito civil, seja no âmbito penal, com o art. 331 ou outros crimes subsidiários.

De qualquer forma, é bom que fique claro: o crime de desacato continua vigente e plenamente aplicável.

Hyago de Souza Otto
Escritor nas horas vagas; cidadão indignado, apartidário e vigilante
Bacharel em Direito pela UNOESC (2015/2). Laborou em escritório de advocacia (2015/2016), foi estagiário do MPSC (2014/2015) e do TJSC (2012/2014). Aprovado no XIV Exame da OAB. Atualmente, é assistente de Promotoria no Ministério Público de Santa Catarina. Amante do Direito e interessado em assuntos políticos.

Fonte: hyagootto.jusbrasil.com.br

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